Na contemporaneidade, a relação entre gênero, sexualidade e psicanálise nos convida a revisitar conceitos fundamentais sobre identidade e desejo. O ponto de partida é a constatação de que não há uma relação sexual universalmente válida – uma lógica que Lacan descreveu como “a não-relação sexual”. Essa colocação abre espaço para pensar o gênero e o corpo como construções simbólicas atravessadas pelo real, onde cada sujeito deve inventar seus próprios arranjos frente ao gozo e à diferença sexual.
A teoria de gênero, em diálogo com a psicanálise, questiona binarismos como homem/mulher ou heterossexual/homossexual. Judith Butler, por exemplo, propõe que o gênero é um processo discursivo e performativo, desafiando as concepções essencialistas e afirmando que a cultura, mais do que a biologia, molda a identidade. Sob essa perspectiva, torna-se evidente que “ser mulher” ou “ser homem” não são categorias fixas, mas posições em constante transformação e ressignificação.
Para a psicanálise, entretanto, a questão vai além da identificação com normas culturais. O gênero não é um conceito central em Freud ou Lacan, mas a sexuação e as posições de gozo são fundamentais. A sexuação, segundo Lacan, refere-se às escolhas singulares de cada sujeito frente ao campo do desejo e do real, articuladas ao simbólico e ao imaginário. Nesse sentido, não é a anatomia que define o destino, mas o modo como cada sujeito se relaciona com o furo no real que a sexualidade representa.
François Ansermet e outros autores contemporâneos destacam que a subjetivação sexual passa pela eleição de modos de gozo – seja fálico ou suplementar –, que não necessariamente se alinham às categorias tradicionais de gênero ou identidade sexual. Essa lógica se estende à clínica psicanalítica, que não busca normatizar o sujeito em relação aos papéis de gênero, mas acolher o singular de cada invenção diante dos impasses do desejo.
Os avanços científicos e culturais também alteraram significativamente o debate, permitindo novas formas de relação com o corpo e a sexualidade. Sujeitos que transitam entre gêneros, que se identificam como fluidos ou que recusam categorizações binárias mostram como o “real do sexo” escapa à tentativa de formalização e regulamentação. A psicanálise contribui ao considerar que o gênero e a sexualidade são sempre processos abertos, marcados por contingências e pela falta de uma fórmula universal.
Nesse cenário, a prática psicanalítica oferece um espaço de escuta para as singularidades de cada sujeito, compreendendo que o gênero, mais do que um destino, é um campo de invenção. Lacan, ao introduzir a teoria da sexuação, nos convida a pensar a sexualidade a partir da pluralidade do gozo e da impossibilidade de estabelecer uma norma que contemple a totalidade dos sujeitos.
Portanto, compensar os conceitos de normalidade e patologia implica reconhecer que a relação entre corpo, gênero e gozo é marcada pela diferença, pela opacidade do real e pela singularidade de cada sujeito. A psicanálise, ao desvendar os enigmas da sexualidade e suas implicações, reafirma seu papel na compreensão das complexidades da experiência humana frente à contemporaneidade.